APONTAMENTOS RELATIVOS À QUESTÃO DO PIPELINE

APONTAMENTOS RELATIVOS À QUESTÃO DO PIPELINE

Newton Silveira

  1. Limitação a direitos de propriedade industrial – patentes farmacêuticas.

Semelhantemente ao que ocorre no campo dos direitos autorais, onde certas limitações são estabelecidas ao direito do autor em consideração à necessidade de acesso à cultura, em especial por parte das Nações em desenvolvimento, encontramos também em relação a direitos exclusivos de propriedade industrial, principalmente no que se refere às patentes de invenção, importantes derrogações tendentes a coibir abusos e desvirtuamento do sistema de patentes. Tais limitações, ao contrário de enfraquecer o sistema, o fortalecem, por lhe devolverem o necessário equilíbrio, devendo-se ter em mente que, tradicionalmente, as patentes serviram de garantia aos mais fracos em relação às empresas poderosas. Nesse sentido se pronunciava Pouillet (Traité théorique et pratique des brevets d’invention et de la contrefaçon, Paris, 1909, pp. XXIII-XXIV): “Les brevets sont, à notre sens, um des meilleurs palliatifs, sinon l’un des plus sûrs remèdes à cet état de choses; ils aident singulièrement à contre-balancer les effets fâcheux du capital. Ils permettent au petit fabricant de lutter heureusement avec les seules ressources de son intelligence contre les écus du gros fabricant”.

A exclusão das invenções tendo por objeto medicamentos de qualquer gênero foi, em nosso País, inovação do Código da Propriedade Industrial de 1945, o Decreto-Lei 7.903. Antes dele, “a Lei 3.129, de 14.10.1882, no § 2º do art. 1º, declarava que não podiam ser objeto de patente as invenções contrárias à lei ou à moral, as ofensivas da segurança pública, as nocivas à saúde pública e as que não oferecessem resultado prático industrial. O Decreto 16.264, de 19.12.1923, conservou as proibições constantes da lei anterior, acrescentando a relativa aos sistemas de cálculos, planos ou combinações de finanças e de créditos”, que figuravam em algumas leis estrangeiras mais antigas. No regime daquela lei, se parecesse que a invenção tinha por objeto produtos alimentares, químicos ou farmacêuticos, procedia-se ao exame prévio e secreto do pedido, sendo a patente concedida ou negada, de acordo com o resultado do exame (lei citada, art. 3º, §2º; cf. João da Gama Cerqueira, Tratado da propriedade industrial, vol. II, t. I, Parte II, ed. Revista Forense, 1952, p.107).

O Código da Propriedade Industrial de 1945 veio incluir, no rol das invenções não privilegiáveis, “as invenções que tiverem por objeto substâncias ou produtos alimentícios e medicamentos de qualquer gênero” (art. 8º, inciso 2º), ressalvada, porém, a privilegiabilidade dos processos novos destinados à fabricação das substâncias, produtos ou matérias constantes dos incisos 2º e 3º do citado artigo (parágrafo único, a, do art. 8º). Assim, no sistema do Decreto-lei 7.903, de 27.8.1945, os processos de fabricação de produtos farmacêuticos podiam ser objeto de exclusividade temporária por meio de uma patente, mas não os próprios produtos, cuja fabricação era livre, em razão de política legislativa que impunha a liberdade de indústria nesse importante setor industrial.

A respeito de tal proibição em nosso principal Código da Propriedade Industrial, comentava o mestre Gama Cerqueira:

“Proibindo a concessão de patentes para invenções que tenham por objeto alimentos ou medicamentos, a lei visa a evitar os abusos que poderiam praticar-se à sombra dos privilégios, não só no que se refere ao preço desses produtos, que poderiam elevar-se arbitrariamente, como no tocante à sua produção. Entende-se que produtos que podem ser essenciais à subsistência ou à saúde devem ser livremente explorados”.

E concluía:

“…parece-nos acertada a disposição que exclui os produtos alimentícios e medicinais do regime de patentes” (ob., vol. e t. cits., pp. 114-115).

Fonte:SILVEIRA, Newton.  Limitações a direitos de propriedade industrial: produtos farmacêuticos, licença compulsória e caducidade. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, 27:73-87, 1978.

  • O direito adquirido dos concorrentes do titular da patente

A CF/88 consagra, seguindo as constituições anteriores e as do mundo civilizado (desde Weimar), o princípio da livre iniciativa e da liberdade de trabalho (veja-se, a propósito, o Alvará de D. João VI).

            Esse princípio é firmado no art. 170 e seu parágrafo único da Carta Magna: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

            Em contraposição, e como exceção ao princípio geral da livre iniciativa, a mesma Constituição garante, entre os direitos e garantias fundamentais estabelecidos no art. 5º, os direitos de propriedade industrial: “XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país”.

            A parte final do dispositivo constitucional é condição e não fundamento dessa proteção (veja-se, a propósito, o inc. III do mencionado art. 170 da Constituição, que prevê, como princípio da ordem econômica, a função social da propriedade).

            O art. 5º da Carta Magna não se sobrepõe ao art.170. Os direitos e garantias individuais devem se coordenar com a ordem econômica e social, constituindo, ambos, regras pétreas. Não há dúvida que o privilégio temporário constitui exceção à regra geral da livre iniciativa.

            Daí sua temporariedade, que estabelece tanto os direitos subjetivos do inventor, quanto os direitos subjetivos daqueles que almejam a liberdade de indústria. A Constituição ampara ambos os direitos, sujeito o primeiro ao tempo.

            O importante é salientar que existem dois sujeitos de direitos: o titular de um monopólio temporário (identificado) e o titular de um direito à liberdade de indústria (não identificado, mas sujeito da norma constitucional), que espera o decurso do tempo para exercer o seu direito.

            Trata-se de um direito, ou de uma expectativa de direito?

            Agora temos de nos socorrer do ilustre Jurista Rubens Limongi França, em seu memorável trabalho Irretroatividade das Leis e o Direito Adquirido (4ª ed., Ed. RT).

            Referindo-se ao Projeto anterior à Carta de 1937, dispunha ele: “Considera-se ato jurídico perfeito o que está concluído na conformidade da lei vigente ao tempo em que foi praticado” (p.43).

            À  p.161, na nota 50, transcreve texto de Francisco Campos: “A não retroatividade é tão-somente uma norma de interpretação, uma regra de hermenêutica, e por ela se entende que o intérprete, ou o juiz, não pode aplicar a lei nova às relações jurídicas já consumadas na vigência da lei antiga”.

            À p. 164, cita Tito Prates da Fonseca: “O direito validamente adquirido, a relação jurídica estabelecida de acordo com a lei vigente, ao tempo em que se praticou o ato ou se deu o fato, pertencem irrevogavelmente ao patrimônio do sujeito”.

            À p. 188, cita Eduardo Theiler, o qual aceita que a lei possa retroagir “desde que ela não acarrete prejuízos, danos ao patrimônio de alguém, ou, em outros termos, desde que o limite da retroatividade da lei consista no respeito ao direito adquirido”.

            Ou, “a lei que domina é a do tempo em que se iniciou o prazo” (ac. Do STF, rel. Min. Orozimbo Nonato, RF 95/103, in Ementário Forense, ob. cit., p.187).

            Assim é que o inc. XXXVI do art. 5º da Carta Magna de 1988 dispõe: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

            À p. 203, a propósito do tema, o autor cita Barbalho: “(…) uma das mais importantes garantias individuais, ao mesmo passo que é um dos grandes princípios da ordem social e da política”.

            Essa é uma característica do sistema jurídico brasileiro e das Américas, motivo pelo qual o autor salienta: “Legatário das tradições jurídicas lusitanas que são, entre os Estados modernos, as mais antigas do mundo, soube, sob certos aspectos, guardá-las, melhor do que a própria Pátria-mãe, de onde ser natural que, na matéria, o nosso Direito esteja, pelo menos nas suas linhas fundamentais, mais evoluído que o dos outros países.

            “Para roborar esta nossa afirmação basta ponderar que, sem a garantia semelhante à do art. 150 da nossa Constituição, de nada vale, ante uma lei qualquer que a desconheça, a doutrina de Roubier na França, a de Affolter na Alemanha e de Gabba na Itália” (ob. cit., pp. 207-28).

            À p. 218, diz o autor: “Quanto ao ato jurídico perfeito, é ele o principal fato gerador do direito adquirido (…)”.

            As regras da LICC, concernentes ao Direito Intertemporal, encontram-se no art. 6º: §1º. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”.

            Por isso, não se aplica ao Brasil a doutrina de Roubier: “Ora, essa questão é tanto mais importante quanto se tem em vista que, revogando a Lei de Introdução de 1942, a Constituição de 1946 condenou a teoria do renomado autor francês” (p. 222).

            Daí conclui Limongi que “inexiste incompatibilidade entre a ideia do efeito imediato e a doutrina do Direito Adquirido” (ob. cit., p.223).

            Em conclusão, não há que se confundir expectativa de direito com direito a termo.

            São direitos adquiridos não só os que já se podem exercer, como “aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixo” (p. 245). Em nota à mesma página, o autor diz que o termo pode ser estabelecido em lei, em ato administrativo, em preceito estatutário, ou ainda em ato jurisdicional. Além disso, o art. 123 do CC estabelece que o dies a quo “suspende o exercício, mas não a aquisição do direito”.

            À p. 251, o Autor cita Beviláqua: “(…) o direito condicional já é um bem jurídico, tem valor econômico e social, constitui elemento do patrimônio do titular”.

            A conclusão de Limongi França é: “(…) no silêncio da Lei, a regra é a irretroatividade” (p. 282).

            “O direito adquirido abrange os direitos a termo, seja final (dies ad quem), seja inicial (dies a quo)”.

            Fonte:SILVEIRA, Newton.  Aplicação do Acordo TRIPS no Brasil. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, 115:66-74, jul./set.,1999.

3.  A novidade como princípio constitucional implícito para a concessão do monopólio por patente

Exatamente devido a motivos de ordem econômica, o Brasil vem sendo pressionado pelos países desenvolvidos a conceder proteção a certas criações que exigem grandes dispêndios em pesquisas, como é o caso das indústrias farmacêuticas, e, mais recentemente, dos programas de computador, ou software.

Quanto aos últimos, essa pressão tem sido aberta e declarada, normalmente vinculada à concessão ou renovação de empréstimos internacionais. Os países desenvolvidos optaram por conceder direitos de autor ou copyrights sobre as criações de programas de computador e pretendem que o Brasil adote idêntica postura, o que implicaria enorme evasão de divisas por pagamentos de royalties a título de direitos autorais, visto que estes não foram previstos nem se acham limitados pela Lei 4.131/62, que disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior.

A indústria farmacêutica tem sido mais sutil e tem tentado derrubar a proibição pela via de declaração judicial de inconstitucionalidade da proibição estabelecida no art. 9, c, do Código da Propriedade Industrial. Não tem logrado sucesso, entretanto.

A constitucionalidade desse dispositivo foi confirmada por acórdão da 1ª Turma do STF de 13.4.82, no RE 94.468-1-RJ, do qual foi relator o Min. Néri da Silveira (RDM 56/130 e ss.), e tem a seguinte ementa: “O legislador ordinário pode definir o que não é patenteável, seguindo critérios técnicos. Não dispôs o legislador ordinário em afronta ao espírito do dispositivo constitucional referido quando, no art. 9º, c, da Lei 5.772/71, vedou a privilegiabilidade quanto às substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como aos respectivos processos de obtenção ou modificação. Recurso extraordinário não conhecido”.

O apelo extremo foi interposto pela Universidade de Strathclyde, da Escócia, a qual impetrara mandado de segurança contra o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, que lhe indeferira pedido de patente para um “processo de preparação de derivados de pteridina”. Denegado a segurança, a impetrante recorreu ao TRF, que, pela 3ª Turma, negou provimento à apelação, unanimemente, em acórdão da lavra do Min. Armando Rollemberg, em cuja ementa destacou: “A fixação de limites à garantia do privilégio de invenção, atendendo ao interesse público e à tradição do nosso Direito, está implicitamente autorizada na Constituição, à qual se ajusta, portanto, o art. 9º, c, da Lei 5.772/71”.

Em seu relatório, perante o TFR, o Min. Armando Rollemberg refutou a alegada inconstitucionalidade nos seguintes termos: “O privilégio não decorre, no caso concreto, diretamente da norma constitucional, que não é auto-executável nem bastante em si mesma, mas da lei ordinária… Na elaboração da lei, deve o legislador ordinário atender às diretrizes de ordem programática, limitativas do direito de propriedade, cuja função social é reconhecida e será mantida mediante a repressão ao abuso do poder econômico (art. 160, III e V, da CF).

No STF, o Relator, Min. Néri da Silveira transcreveu parecer da Procuradoria-Geral da República, o qual referiu decisão anterior do TFR, em caso similar, cujo voto vencedor assim concluía; “Isto posto e levando em conta que a proibição, em tais casos, objetiva o bem coletivo, pelo que prevalece sobre a disciplinação que anteriormente regulava a matéria, reformo a sentença e casso a segurança”. Referiu, ainda, o Min. Relator, decisão do Plenário da Suprema Corte que já se manifestara pela constitucionalidade da norma em apreço, quando votara, contra o Min. Clóvis Ramalhete e seguindo o voto do Min. Moreira Alves, no sentido de que a norma constitucional não garante a patenteabilidade de qualquer invento, cabendo ao legislador ordinário disciplinar a matéria tendo em conta o espírito da norma constitucional.

A decisão da 1ª Turma do STF foi unânime, nos termos da ementa acima mencionada.

            Fonte: SILVEIRA, Newton.  Garantias constitucionais aos bens imateriais.  Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, 60:18-23, out/dez., 1985.

  • Conclusão.

O que se deduz é:

a) a indústria farmacêutica é um caso muito especial na área de patentes;

b) a comunidade (isto é, a concorrência) tem direito adquirido a fabricar produtos cujas patentes não foram requeridas oportunamente, por estarem em domínio público;

c) o requisito de novidade está implícito na Constituição, por interpretação do inc. XXIX do Art. 5º.