Newton Silveira
Resumo: Patentes de uso se incluem ao lado dos processos de fabricação como meios de fabricar novos produtos ou de obter resultados industriais. Os usos privados não são privilegiáveis, por expressa exclusão legal. Os novos usos de produtos farmacêuticos conhecidos se incluem nessa categoria de invenções não privilegiáveis. Isso não significa que produtos da biotecnologia não sejam patenteáveis na medida em que se prestem à fabricação de novos produtos úteis.
Abstract: Patents of use are included, as the manufacturing processes, as a mean to manufacture new products or obtain industrial results. The private uses are not patentable due to express legal exclusion. The new appliances of known pharmaceuticals products are included in this category of non-patentable inventions. This doesn’t mean that biotechnology products are not patentable when they serve to manufacture new useful products.
Palavras-chave: Patentes de 2º uso – Propriedade Industrial – Medicamentos – TRIPS
Keywords: Patents of 2nd use – Intelectual Property – Drugs – TRIPS
Sumário: Introdução. 1. Patentes de segundo uso – 2. Atividade Inventiva – 3. Patente de Uso – 4. Novidade – 5. Meio Industrial – 6. A justa medida do requisito de atividade inventiva para a concessão de certas patentes – 7. Modo de aquisição e desvio de poder – 8. Considerações finais – Referências bibliográficas
Summary: Introduction. 1. Patents of second use – 2. Inventive Activity – 3. Patent of Use – 4. Novelty – 5. Industrial application – 6. The fair application of the inventive activity for the granting of certain patents – 7. Means of acquiring and misuse of power – 8. Conclusions – Bibliography
Introdução
As patentes surgiram no bojo da revolução industrial inglesa, tendo como fonte próxima a Revolução Francesa de 1789.
É verdade que, no passado, foram feitas algumas experiências de concessão de privilégios industriais para estimular a inovação, como a Lei de Veneza de 1474 e, mesmo, o Alvará de D. João VI de 29 de abril de 1809 (este já posterior à Revolução Francesa).
Mas as patentes, como elemento central de um sistema econômico, surgiram na França após a abolição das corporações de ofícios e em substituição aos privilégios corporativos. No mesmo ano de 1791 o Deputado Le Chapelier propôs duas leis que foram aprovadas apenas dois anos após a queda da Bastilha, uma abolindo as corporações e outra instituindo a proteção aos inventores.
De lá para cá instituiu-se a liberdade de trabalho e iniciativa (art. 170 da nossa Carta Magna), não sem prever-se legislativamente a concessão de privilégios industriais temporários, para o fim de estimular a inovação e preservar o criador de uma concorrência predatória.
Mas o titular de uma patente de invenção deve utilizá-la de acordo com sua finalidade, sem desvio de função ou abuso do seu direito.
Assim, por exemplo, se considerarmos o direito do titular de uma patente na Lei de Propriedade Industrial, veremos que o art. 42 estabelece o direito exclusivo do titular da patente e o art. 43 relaciona sete exceções, inclusive o inciso IV, que cuida, também, da importação paralela:
“Art. 43. O disposto no artigo anterior não se aplica:
(…)
IV – a produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto que tiver sido colocado no mercado interno diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento.”
Assim, em princípio, a exaustão no campo das patentes é exaustão nacional.
Mas, se formos ao §4º do art. 68 da Lei de Propriedade Industrial, veremos ser admitida a importação por terceiros de produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto, desde que tenha sido colocado no mercado diretamente pelo titular ou com seu consentimento.
Agora, trata-se de exaustão internacional. (vide importação e colocação no mercado).
Quando a exaustão nacional do inciso IV do art. 43 se transforma em exaustão internacional? No caso de importação para exploração da patente. Ou seja, se o titular da patente importa, terceiros poderão importar.
Isso porque se o titular da patente importa para evitar a licença compulsória prevista no §1º do art. 68, está praticando um abuso (falta de exploração da patente no território = abuso, v. item 2 do art. 5º da Convenção de Paris).
Nesse caso, a transformação da exaustão nacional em internacional tem por fim atenuar o abuso de obter uma patente e não explorá-la no território, suprindo a falta de fabricação local pela importação do produto.
Mas, qual o modus desse direito?
O direito do titular de uma patente está expresso no art. 6º: “será assegurado [ao autor] o direito de obter patente que lhe garanta a exclusividade, nas condições estabelecidas nesta Lei”.
O modus está no art. 42:
“Art. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos:
I – produto objeto de patente;
II – processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.”
E, ainda, com as restrições e exceções colacionadas no art. 43.
- Patentes de segundo uso
As patentes de uso se incluem ao lado dos processos de fabricação de novos produtos ou de obter resultados industriais. Os usos privados não são privilegiáveis, por expressa exclusão legal. Os novos usos de produtos farmacêuticos conhecidos se incluem nessa categoria de invenções não privilegiáveis. Isso não significa que produtos da biotecnologia não sejam patenteáveis na medida em que se prestem à fabricação de novos produtos úteis.
- Atividade inventiva
Muito se tem discutido a matéria de patentes de 2º uso na área farmacêutica.
Alegam os requerentes desse tipo de patente que o 2º uso se refere ao mesmo medicamento (a mesma formulação) usado para o tratamento de outra enfermidade.
Onde estaria a diferença?
Na indicação terapêutica, ou seja, na bula. Sem bula, o medicamento é o mesmo.
Daí a discussão surgir na área farmacêutica, já que o medicamento não pode ser vendido sem bula.
Seria o caso de direito autoral sobre a bula?
Evidentemente, quem compra um martelo pode usá-lo para bater bife, em lugar de usá-lo para bater pregos. Isso é possível porque o 2º uso não está escrito na bula do martelo. Esse utensílio não tem indicação terapêutica…
Exemplo recente e menos fantasioso pode ser retirado da Apelação cível n. 9070658-28.2002.8.26.0000 do TJSP, em acórdão da lavra do eminente Des. Enio Zuliani (relator)
A ementa do Acórdão proferido em 22.09.2011 pela 4ª Câmara de Direito Privado do TJSP tem o seguinte teor:
“Autores que pretendem proteção de exclusividade de invento (spray de tinta que árbitros de futebol utilizam para sinalizar, na grama, as penalidades de jogo). INPI que negou a patente requerida por falta do requisito criatividade ou novidade (art. 13, da Lei n. 9.279/96). Apetrecho que não constitui invento, mas, sim, ideia de utilização prática de dispositivo comum. Improcedência mantida. Não provimento”.
É importante assinalar o seguinte trecho do voto do Des. Zuliani:
“O spray é ferramenta comum para o serviço de pintura e desenho e não há invento algum em aproveitar a sua função para demarcar território das arenas futebolísticas com o propósito de fixar o local exato para colocar a bola a ser chutada ou para estabelecer a linha de barreira dos jogadores que protegem o gol. A ideia de utilizar isso no campo de grama foi brilhante e serviu para corrigir um problema crônico da arbitragem, o que não significa invento digno de patente ou de privilégio, como pretenderam os autores”.
Diferente seria se uma indústria de spray o colocasse no mercado com bula, expressamente indicando o novo uso do spray. Caso contrário, os titulares dessa esdrúxula patente deveriam estar presentes em todos os jogos de futebol, munidos de competente mandado judicial para apreender o spray tão logo o árbitro o utilizasse para o novo uso…
- Patente de uso
O art. 42 da Lei de Propriedade Industrial dispõe:
“A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos:
I – produto objeto de patente;
II – processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado”.
Assim, o titular de uma patente de 2º uso não pode impedir terceiros de produzir o medicamento, pois ele é idêntico ao de 1º uso (que se acha em domínio público). Também não pode impedir terceiro de colocar à venda, vender ou importar o medicamento, pela mesma razão: a formulação se acha em domínio público.
Resta do caput do art. 42 o verbo usar. Mas quem usa o produto não é quem fabrica ou comercializa. Quem usa o produto em 2º uso é o consumidor. Este se acha coberto pela exceção do inciso I do art. 43, que isenta os atos praticados por terceiros não autorizados em caráter privado e sem finalidade comercial.
O que resta então?
Anunciar, na embalagem ou na bula, a nova destinação do medicamento. Anunciar, então, seria o verbo que se aplicaria. No entanto, esse verbo não se acha nas previsões do caput do art. 42, redigido em obediência ao Acordo TRIPs.
Além do mais, tal proibição significaria violação ao direito constitucional de livre expressão.
Não se vislumbra, assim, enquadramento algum nos verbos previstos no art. 42: produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar.
Vejam-se os dois incisos do art. 42: produto objeto de patente – não é o caso, como exposto; processo patenteado – também não é o caso, pois não se trata de processo; portanto, também não se trata de produto obtido por processo patenteado.
Qual poderia ser o teor de uma sentença proferida num processo de contrafação de patente de 2º uso? Proibir o réu de praticar 2º uso, ou sugerir ao consumidor tal 2º uso?
Como se vê, não se trata de falta de atividade inventiva, mas de falta de previsão legal. Ou falta de lógica…
Imaginemos um caso real de 2º uso.
Os nazistas inventaram tomar champanhe num sapato feminino. O champanhe continua sendo fabricado e vendido pelas fábricas de bebidas; os calçados pelas fábricas de sapatos.
Mas a venda de uma garrafa de champanhe ao lado de um sapato feminino em embalagem transparente seria um 2º uso de exclusividade do III Reich. Uma espécie de patente de comercialização.
Ainda um aperfeiçoamento poderia ser acrescentado: um sapato impermeável para não vazar o champanhe. Esse sapato também serviria para ser usado em dias de chuva. Terceiro uso…
- Novidade
Ananda Chakrabarty, pesquisador do MIT (Massachusetts Institute of Technology), inventou uma bactéria engenheirada que digeria petróleo, colaborando com a limpeza ambiental.
O USPTO (United States Patent and Trademark Office) denegou a patente por considerar que matéria viva não é patenteável.
Chakrabarty foi à Suprema Corte, que determinou que o USPTO concedesse a patente porque tudo de novo sob o sol criado pelo homem deveria receber uma patente.
Posteriormente, tentou-se nos Estados Unidos patentear genes modificados. A matéria foi considerada não patenteável porque não basta haver novidade, há que ter também uma nova utilidade.
O Acordo TRIPs de 1994 veio a estabelecer as regras de patenteabilidade, exceto de microrganismos e processos essencialmente biológicos.
Em consonância, a Lei de Propriedade Industrial brasileira veio a considerar não invenções o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, exceto os microrganismos transgênicos, que não sejam mera descoberta.
Tudo isso significa que aquilo que existe na natureza não pode ser patenteado, mesmo que tenha uma nova utilidade, até então desconhecida.
Ou seja, tudo que se acha sob o sol não é novo e não pode ser patenteado.
Uma raiz amazônica que cura hemorroidas não pode ser patenteada em seu estado natural, nem mesmo em forma injetável.
Ora, medicamentos que já caíram em domínio público equivalem às coisas naturais, todos já sob o sol. Da mesma forma que um microrganismo tal como encontrável na natureza não é patenteável, mesmo que se descubra para ele uma nova utilidade, medicamentos já conhecidos não poderão ser repatenteados para uma nova finalidade.
Se se descobrir que um medicamento utilizado para disfunção erétil também serve para curar enxaqueca, teríamos duas embalagens diferentes, uma para uso masculino, outra para uso feminino? Ou poderíamos ter uma embalagem unissex com duas bulas, uma azul e outra cor-de-rosa?
Conta-se que a Salvador Dali foi encomendada a elaboração do design de um frasco para um novo perfume.
No dia do lançamento do perfume, o artista se esquecera da encomenda. Levado ao palco sob o espocar dos flashes, perguntou-se: Mestre, e o projeto? Catando do chão uma lâmpada de flash e batendo-a na mesa para ficar de pé, Dali a apresentou como o novo modelo. Perguntado sobre a marca, respondeu: a marca é flash.
Mais um caso de 2º uso.
- Meio industrial
Gama Cerqueira, no vol. I de seu Tratado (n. 68), afirmou:
“A invenção, de modo geral, consiste na criação de uma coisa inexistente na natureza”[I].
Ou, mais adiante:
“A coisa inventada deve ser diferente do que já é conhecido” (n. 71)[II]..
E ainda mais:
“Reconhecer que um produto natural ou fabricado possui certas propriedades e indicar o proveito que delas se pode tirar não é inventar” (n. 74)[III].
No entanto, afirma-se que Gama Cerqueira admitia a concessão de patentes de 2º uso. Antes de mais nada, certamente não se tratava de 2º uso farmacêutico, já que é notório que o autor considerava razoável não se conceder patentes a medicamentos.
No vol. II prosseguia Gama Cerqueira: “Somente os produtos fabricados ou elaborados pelo homem podem ser objeto de patente… Mas os processos e métodos destinados à produção, tratamento e exploração industrial dos produtos naturais podem ser privilegiados, assim como a aplicação nova desses produtos para obter um outro produto ou um resultado industrial”(n.26)IV.
Ou seja, a ideia de nova aplicação não pode se referir a produto, como exposto. Pode, no entender de Gama Cerqueira, achar-se entre os processos e métodos para produzir um resultado industrial. Será então um meio industrial para obter um produto ou outro resultado. Na indústria…
- A justa medida do requisito de atividade inventiva para a concessão de certas patentes
Discute-se se o requisito legal de atividade inventiva previsto no art. 8º da Lei de Propriedade Industrial tem caráter objetivo, subjetivo ou se deve ser levada em conta uma variação do nível exigível conforme a natureza da invenção.
A concessão de patentes para pequenas invenções (a par dos modelos de utilidade), as chamadas invenções incrementais, pode ser útil para estimular a criatividade em áreas industriais que não interferem com as necessidades humanas.
Em outras áreas críticas para a satisfação do ser humano, a concessão desarrazoada de monopólios pode atingir e lesar direitos fundamentais. Nessas áreas o critério de concessão de patentes deve ser mais exigente, criando um balanço entre o propósito de desenvolvimento econômico e as necessidades básicas do ser humano.
Em certos casos, o conflito latente se situa no próprio campo econômico, exigindo a aplicação do direito antitruste.
Veja-se, por exemplo, a questão do registro do desenho industrial de autopeças, que levou o direito exclusivo das montadoras de veículos a interferir no mercado secundário de reposição de peças, matéria que se acha em exame no CADE. A questão ali é que o Instituto Nacional de Propriedade Industrial não deveria ter efetivado o registro de partes separadas da carroceria. Um nível mais alto de exigência do caráter de originalidade e distintividade teria evitado as funestas consequências de injusta elevação de preços no mercado de reposição.
Na área dos direitos autorais, a pretensão da ABNT de considerar normas técnicas como texto literário seria descartada por falta de valor estético.
No campo das marcas, recentemente a Justiça Federal do Rio de Janeiro anulou vários registros de marcas numéricas para distinguir etiquetas por não constituírem verdadeiras marcas, servindo tão somente ao propósito de cartelizar o comércio de etiquetas colantes.
Mas é na área das patentes de invenção que surgem mais abusos. As fabricantes de máquinas impressoras descobriram uma maneira de monopolizar os cartuchos de tinta por meio de patentes relativas aos próprios cartuchos, separados da máquina. Supostamente, os cartuchos patenteados confeririam maior qualidade à impressão. Nada impediria, no entanto, que o dispositivo impressor estivesse na própria máquina, e não no cartucho. Mas isso provocaria a indesejável presença da concorrência no mercado de cartuchos de reposição.
Em outras palavras, o simples deslocamento do dispositivo impressor da máquina para o cartucho não representa atividade inventiva. Já o art. 9º do Código de Propriedade Industrial de 1945 dispunha:
“Art. 9º
Não são privilegiáveis:
[…]
e) as justaposições de processos, meios ou órgãos conhecidos, a simples mudança de forma, proporções, dimensões ou de materiais, salvo se daí resultar, no conjunto, um efeito técnico novo ou diferente, não compreendido nas proibições deste artigo”.
O fato é que, na hipótese, não estamos diante de um importante desenvolvimento tecnológico, mas sim de um artifício mercadológico disfarçado de patente de invenção.
Em todos esses casos, visualizar somente o aspirante a titular de um direito de exclusividade sem ver, no lado oposto, o usuário da inovação, o beneficiário final, significa desvirtuar todo o sistema da propriedade intelectual.
Todo o sistema da propriedade intelectual está ancorado na retribuição ao esforço intelectual humano, seja no campo da técnica, seja no campo da estética, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
No plano infraconstitucional, vários institutos foram criados artificialmente pelo legislador, sobretudo após a Revolução Industrial, para a proteção de algo eminentemente abstrato, já que até mesmo no campo das artes aplicadas o que se protege não é o objeto em si mesmo, mas o esforço, a inspiração, o impulso ou mesmo o que os italianos chamavam de “magia” para chegar a algo perceptível aos sentidos humanos.
Pois bem, no campo da técnica e, grosso modo, no das soluções para problemas enfrentados pela indústria, a patente representa o estímulo do Estado para o tal desenvolvimento tecnológico e econômico do País, conferindo ao seu titular o direito de exploração exclusiva da invenção por um período delimitado no tempo, após o qual todos poderão se valer livremente do avanço obtido pelo empreendedor.
Com efeito, é fortíssima a carga ideológica do sistema de propriedade intelectual, que se harmoniza perfeitamente com o ideal capitalista, no sentido de que as pessoas devem se diferenciar a partir do esforço individual de cada um, com o que, ao final, ganha toda a sociedade.
Assim, o próprio sistema não tolera o comportamento daquele que abusa do direito de ser premiado. Explica-se: aquele que reclamar ao Estado o direito de exploração exclusiva de certa invenção sem se preocupar em preservar a concorrência nem divulgar o conhecimento será prontamente despejado do sistema.
- Modo de aquisição e desvio de poder
O próprio modo de aquisição do direito exclusivo sobre invenções aponta para o desvio de poder do funcionário público que concede uma patente em detrimento dos princípios insculpidos na Constituição, permanecendo no agradável plano da incontrovérsia que o princípio se sobrepõe à norma e que a ofensa ao princípio agride o ordenamento jurídico de maneira muito mais contundente do que a inobservância de um determinado dispositivo legal.
Nesse sentido, ensina Oswaldo Aranha Bandeira de Mello que “[…] o desvio de poder se restringe aos casos de exercício por órgão da Administração da sua competência em desrespeito ao fim a que essa competência está sujeita, que o direito objetivo lhe demarca. Destarte, transborda do poder que lhe fora confiado”. (grifos nossos).
Em trilha mais abrangente, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que “[o]corre desvio de poder, e, portanto, invalidade, quando o agente se serve de um ato para satisfazer finalidade alheia à natureza do ato utilizado” ou “[…] quando um agente exerce competência que possuía (em abstrato) para alcançar uma finalidade diversa daquela em função da qual lhe foi atribuída a competência exercida”.
Dessa forma, o âmbito de atuação da autoridade administrativa, no caso das patentes os abnegados técnicos do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, é estabelecido pelos limites de sua competência e, principalmente, pela finalidade do ato administrativo praticado.
É evidente, portanto, que uma patente concedida em desacordo com os princípios constitucionais que lhe servem de supedâneo, entre os quais ganha especial relevo o da livre concorrência, é nula de pleno direito, não produzindo efeito jurídico algum e sujeitando o seu titular a indenizar terceiros por perdas e danos.
Note-se que não é dado ao agente do Estado conceder patentes que agridam os princípios referidos acima, mesmo que da perspectiva formal estejam satisfeitos pelo requerente os requisitos previstos nos arts. 6º a 18 da Lei n. 9.279/96.
Em outras palavras, não será produtiva a tentativa de procurar abrigo nos requisitos formais para a apreciação do pedido de patente quando revelada, ainda que posteriormente em ação declaratória, a ofensa aos princípios que orientam a concessão de privilégios ao inventor, ofensa esta que prescinde do elemento volitivo do agente.
Fica evidente, portanto, que o que se deve negar a ele não é o seu direito, mas antes o exercício ilegítimo deste.
Não obstante a noção de invenção despontar impregnada por uma aura positiva objetiva, que pressupõe sua utilidade na forma de solução a um problema de natureza técnica, como anteriormente definido, do ponto de vista funcional do direito de patente – isto é, do ponto de vista concorrencial – sua utilidade está ainda necessariamente vinculada à sua função de “catalisador” de um processo que culmina em um resultado positivo (desejado). Neste contexto a invenção não é útil apenas porque soluciona um problema de natureza técnica, mas antes e ainda porque põe em movimento um processo econômico pautado na concorrência de superação inovadora.
Invenções que não satisfaçam este último requisito, que, ao contrário do que se almeja, estejam vinculadas a uma estratégia de bloqueio dos caminhos da concorrência de superação inovadora, são, do ponto de vista do exercício do direito de patente, e sempre sob a perspectiva do mercado específico, invenções predatórias.
Aqui a prerrogativa de fazer valer a vantagem concorrencial que recai sobre a invenção se esgota (isto é, o exercício do direito de patente), posto não ter sido ela desenhada para legitimar práticas predatórias.
- Considerações finais
A propriedade industrial não cabe na Lei de Propriedade Industrial. Ela se espraia na Lei de Abuso do Poder Econômico, no Código Civil, no “Código” de Defesa do Consumidor e, primordialmente, na Constituição Federal.
Como imaginar que um examinador do INPI tenha sensibilidade suficiente para saber que determinado medicamento é essencial para a proteção da saúde humana (direito constitucionalmente garantido) e que, portanto, o critério de nível inventivo a ser exigido na análise de um pedido de patente deva ser mais elevado?
Não é por outra razão que o legislador inseriu na Lei de Propriedade Industrial a determinação de que certos pedidos de patentes devam receber anuência prévia da Anvisa.
Patentes de segundo uso de medicamentos e outros desenvolvimentos incrementais devem, necessariamente, passar pelo crivo da essencialidade da invenção.
Referência bibliográfica:
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade Industrial. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2010, vol. I, parte I. 3ª. edição, p. 153, 157 e 161.
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2010, vol. II, tomo I. 3ª. edição, p. 42.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo, Malheiros, 2003, p. 371-2
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro, Forense, 1969, v. I, p. 484.
[I] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade Industrial. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2010, vol. I, parte I. 3ª. edição, p. 153.
[II] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade Industrial. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2010, vol. I, parte I. 3ª. edição, p. 157.
[III] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade Industrial. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2010, vol. I, parte I. 3ª. edição, p. 161
IV CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2010, vol. II, tomo I. 3ª. edição, p. 42.