Os debates concorrenciais recentes têm destacado as cláusulas de não concorrência, em especial no contexto da sua disseminação no mercado de trabalho estadunidense. A discussão acerca da licitude dos pactos de não concorrência, entretanto, não é recente e permite perceber a necessidade do direito concorrencial ser compatibilizado com a ordem econômica constitucional. Esse debate pode ser ilustrado pela questão da licitude das cláusulas de raio e a relação entre defesa da concorrência e a concorrência desleal. As modalidades de concorrência interdita (a exemplo dos direitos de propriedade intelectual) são manifestações da autonomia privada que possibilitam a restrição privada da concorrência, tornando o seu descumprimento uma forma de concorrência ilícita, ao lado da concorrência ilegal (art. 195 da Lei 9.279/96[1]) e da concorrência desleal (art. 187 do CC/2002).
Entre as principais distinções dos blocos acima narrados destaca-se: (a) trata-se do âmbito de tutela aos direitos subjetivos stricto sensu pela constituição de propriedades intelectuais (muitas vezes frutos de atos administrativos do INPI), ou de direitos de crédito – com enorme espaço para as liberdades individuais; (b) trata-se do âmbito de tipicidade aberta, com incidência subsidiária[2] às categorias (a) ou (c); e (c) trata-se do âmbito das tipicidades fechadas, do direito objetivo que contempla os fatos jurídicos mais comuns que acabaram cristalizados pela legalidade estrita. Pode-se identificar três perfis de cláusula que são aquelas pactuadas: (1) no ambiente de centros comerciais e galerias; (2) no contexto de uma franquia; e (3) por titulares de direitos de propriedade intelectual em contexto distinto dos de (1) ou (2)[3].
No caso (1) a cláusula de raio beneficia o locador comercial em detrimento do locatário comercial. Aqui, mesmo que este tipo de conteúdo seja desvantajoso ao consumidor ou ao empreendedor/locatário, os interesses do locador acabam por prevalecer[4]. Em feito dirimido pelo STJ, compreendeu-se que até o aumento incidental da extensão do raio[5] seria compatível os demais interesses em xeque. No âmbito da defesa da concorrência, o contexto legal e econômico aponta para a organização do espaço, bem como a necessidade de garantias ao investimento realizado, naquele local, como justificativas para a legalidade de tal cláusula. Afinal, se o titular do estabelecimento comercial quisesse inaugurar um McDonalds® próximo daquele já sediado no shopping – de sua mesma titularidade – seria possível haver apropriação do investimento feito pelo empreendedor inicial. Por outro lado, deve haver razoabilidade sob a ótica concorrencial, uma vez que uma rede de distribuição ampla e exclusiva é obstáculo que pode afastar novos entrantes. Assim, se o mesmo sujeito de direito (que explora uma franquia do McDonalds®) quisesse inaugurar um Bob’s® nas proximidades do shopping, e no referido centro comercial não houvesse tal loja, não seria tão forte a ratio pro-concorrencial de tal cláusula. A busca normativa deve ser pelo equilíbrio entre o incentivo ao investimento no desenvolvimento dos direitos de propriedade intelectual, de um lado, e da própria atividade comercial. Entretanto, esse equilíbrio não pode ser visto de forma teórica e sem uma análise do contexto econômico negocial, o que poderia levar a uma cláusula de raio ser tanto abusiva sob a ótica do direito comercial quanto uma infração concorrencial. Assim, a preocupação concorrencial não deve ser a única e deve ser compatibilizada com os demais interesses juridicamente relevantes em jogo. Neste sentido, o mesmo STJ, em outro feito[6], já suspendeu a execução de uma condenação do CADE quanto a aplicação de cláusulas de raio desta sorte, indicando uma tendência à tolerância a tal forma negocial.
Com relação às (2) franquias, as cláusulas de raio costumam ser objeto de desejo dos franqueados, e não dos franqueadores. Cuida-se, em verdade, de animus da parte hipossuficiente de cercear o estabelecimento de um terceiro próximo a si junto ao licenciante. Logo, se (i) se está diante de uma população menos extensa, (ii) se está em local no qual o deslocamento é complexo, ou longo, ou (iii) se está diante de um ambiente em que os custos fixos com a locação comercial impedem o remanejamento do locatário; a própria economicidade do contrato (para o aderente da Circular de Oferta de Franquia) poderá depender da referida cláusula. Novamente, tal como na hipótese (1), um sujeito (franqueado) é beneficiado pela cláusula, e outros dois não o são (franqueador e consumidor).
Por sua vez, é possível observar no contexto (3) hipóteses em que sujeitos de direito que ostentam a titularidade de marcas (registradas ou não) símiles, pactuam determinada distância de incidência mercantil, para evitar que consumidores tomem um pelo outro. Verbi gratia, (i) se um agente econômico atuante no Acre toma notícia de outro congênere, (ii) com sinal distintivo bem próximo ao seu, (iii) mercanciando no Sergipe, (iv) uma demanda de invalidade do ato administrativo praticado pelo INPI, ou (v) uma pretensão fundada em suposta contrafação do título, podem ser medidas caras e ineficazes. Imagine-se que em tal exemplo, a sociedade que atua no Norte não tenha qualquer proposta em se expandir ao Nordeste e vice-versa. Um pacto fundado em tal cláusula poderá ser uma forma útil de prevenir litígios e estimular a máxima função da propriedade sobre os bens de produção.
Contudo, a depender do grau de concentração[7] de poder econômico[8], do grau de assimetria de forças entre os pactuantes, da essencialidade dos ramos da atividade empresarial e da elasticidade de demandas, todos os contextos da cláusula de raio (1), (2) e (3) poderão atrair a atenção do CADE. Muitas das variáveis de tais hipóteses saem da moldura hermenêutica mais segura e se aproximam de zonas de penumbra[9]. Fazendo uma análise extensiva do que o STJ já dirimiu, é provável que os pactos de não concorrência sejam menos relevantes no contexto de lojas de calçados ou idumentária, do que o sejam no ambiente das clínicas de diagnósticos, por exemplo. Ainda, uma cláusula circunscrita aos teores intestinos de franquia (Mr Cat® v. Mr Cat®) é menos suscetível de controle da validade pelo Poder Executivo, ou Judiciário, do que aquela afeita a todo um ramo (C&A® v. Renner®). Por fim, existe um tipo de cláusula que se mostra contrário à cláusula fundacional da livre iniciativa, além de exótica, não passaria pelo crivo da legalidade constitucional. Exempli gratia, se na hipótese (1), um centro comercial incluísse cláusula contratual apta a precatar que o locatário no shopping de um estabelecimento que venda balas e doces pudesse realizar atividade comercial, de outra natureza (ex: florista), nas proximidades da locação, cuidaria de violenta incidência de pacto contra a livre iniciativa (art. 1º, IV, da CRFB).
Logo, em síntese, cláusulas de raio são como o momento de transição: não significam vedação absoluta ou libertinagem, e exigem particular moderação. Quando se coteja hipóteses de contínua maximização de diâmetro do raio (de 3km para 5km), ou quando se deseja realizar hermenêutica de cerceamento às entregas em domicílio antes inexistentes (o raio era de localização física do estabelecimento), adentra-se ao ilegítimo ambiente de interpretação extensiva de cláusulas restritivas à concorrência (art. 170, IV e V, da CF).
Pedro Marcos Nunes Barbosa – Sócio de Denis Borges Barbosa & Professor Doutor da PUC-Rio.
Vinicius Klein – Procurador do Estado do Paraná & Professor Doutor da UFPR.
[1] BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 266. Para uma análise que diferencia as três formas de concorrência ilícita no direito privado, seja permitida a remissão a BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
[2] ASCENSÃO, José de Oliveira. Concorrência Desleal. Coimbra: Almedina, 2002, p. 352.
[3] Também existem outros perfis das cláusulas de não concorrência, a exemplo (4) do que prospera no contexto laboral.
[4] Vide o precedente: STJ, 4ª Turma, Min. Marco Buzzi, REsp 1.535.727, DJ 20.06.2016.
[5] A Cláusula dizia – “7.26. O LOCATÁRIO, ressalvado estabelecimento já existente na data de assinatura deste contrato, não poderá ter outro (sede, filial, etc), dedicado ao mesmo ramo de atividade a ser por ele exercida no ESPAÇO COMERCIAL objeto do contrato de locação e outras avenças, localizado dentro de um raio de 3.000,00m (…).”.
[6] STJ, 1ª Turma, Min. Napoleão Maia, REsp 1.125.661, DJ 16.04.2012.
[7] FORGIONI, Paula. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. 2ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 130.
[8] SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 28.
[9] SCHAUER, Frederick. Thinking Like a Lawer: a new Introducion to Legal Reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2012, p. 19.