Por Pedro Marcos Nunes Barbosa]
A rivalidade e a concorrência são conceitos distintos que integram uma noção mais ampla do gênero competição [1]. Enquanto no gênero da cooperação as relações jurídicas e sociais são marcadas por nexos de escopo (bem comum, a exemplo da sociedade ou da vida em condomínio) ou de permuta (sinalagma, a exemplo da compra e venda ou da locação), no ambiente competitivo, se os atores têm como alvo um ganho predominantemente existencial (a exemplo dos desfiles de escola de samba ou do esporte), se estará diante da rivalidade, enquanto se buscar uma vantagem essencialmente econômica (a exemplo de duas lojas de mate/acepipes sediadas na mesma rua do Centro do Rio de Janeiro) é provável que se esteja no campo da concorrência.
Note-se que a expressão predominantemente é relevante, pois não é desconhecido ser provável que um sujeito de direito se motive desportiva e economicamente no mesmo mister, tal como é possível que alguém dispute clientela, mas com o foco em melhorar a qualidade de vida do destinatário. Há relativa zona cinzenta entre os conceitos, mas o que auxilia o intérprete em sua distinção é a fungibilidade relacional, a incidência de fidúcia ou de elasticidade, o caractere passional ou profissional. Nas relações de rivalidade o destinatário será um fiel, um torcedor ou um adepto; enquanto nos plexos concorrenciais se está no mundo do consumidor. O oportunismo é mais comum nas relações de concorrência, enquanto a lealdade é mais corriqueira nas relações de rivalidade para com seus destinatários.
Não obstante suas distinções, a doutrina clássica [2] da concorrência desleal sempre fez uso dos exemplos da rivalidade para, por analogia, explicar a incidência jurídica no ambiente das relações abrasivas de disputa de clientela. Celso Delmanto [3], por exemplo, vaticina que se um boxeador escondesse um pedaço de ferro entre suas luvas, agiria deslealmente. Se é esperado que um contendente inflija nocaute no outro — pois causar danos, nesse ambiente, é lícito —, a forma com a qual o “golpe perfeito” é aplicado pode não ser juridicamente defensável (a exemplo dos locais em que o impacto não seja admitido). De um modo ou de outro, o contexto — violento — do ringue não é o da quermesse ou o da passarela de desfile estilístico.
Factualmente, os ritos do contexto são mesmo úteis para contrastar os danos esperados e legítimos daqueles inesperados e desleais [4]. Uma lição útil foi dada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina [5] em feito dirimido já durante a pandemia contemporânea. Um árbitro de futebol insatisfeito (com as insinuações ofensivas advindas de torcedores indignados com suas decisões desportivas em campo) intentou pretensão compensatória ventilando ter sofrido dano moral. O juízo de Direito compreendeu que os fatos não eram controvertidos, mas que a incidência jurídica o era.
O resultado da lide foi o julgamento da improcedência dos pedidos do árbitro, pois “(a)s ofensas eventualmente praticadas contra o autor, não são desejáveis, especialmente pelo cunho inadequado e reprovável, porém, por conta da profissão por ele exercida (árbitro de futebol) (…) são incapazes de gerar abalo anímico”. Em outras palavras, dentro daquele riscado o tratamento esperado não era o de “Vossa Excelência, discordo”, “excelentíssimo sr. árbitro, peço vênia” ou “caro senhor, tenho uma crítica à sua atuação”. Quem escolhe essa difícil profissão deve fazê-lo ciente de que será objeto de exteriorizações não elogiosas, bem distinto, por exemplo, do que “sofreria” sendo árbitro de badminton ou curling.
Algo símile ocorre no campo da concorrência, que pode ser mais bem dirimida e compreendida em uma analogia com o direito de vizinhança [6]. Há rincões de qualquer cidade em que imperam condutas mais silenciosas, enquanto noutros, no mesmo município, são mais tolerantes com a gritaria, a algazarra e o barulho. Até mesmo nos bairros menos exigentes com a serenidade sonora há limites, mas estes não coincidem com o que seria tido como limítrofe na outra zona urbana. Exigir graus de conduta idêntica em todos os bairros seria uma atitude ignorante aos usos e costumes locais, quiçá uma forma de censura monista bastante perigosa. Além do recorte “local”, o recorte “temporal” também é imperativo para se compreender a contenda: os limites sonoros em ambos os bairros podem variar a depender da época do ano, ao exemplo do que se tem como tolerável pela passagem de bloquinhos de Carnaval ou de uma micareta.
No ambiente da concorrência desleal é preciso particular cuidado para que narrativas de supostas vítimas não sirvam como maquilagem de “vitimismo”, também conhecido pelo acrônimo TDM (vulgo tadinho de mim [7]). Ou seja, é preciso que o órgão julgador contemple se o campo daquela competição é mais ou menos abrasivo, se as narrativas comportam danos injustos para efeitos do que é esperado naquele setor. Não é possível olvidar que danos competitivos são, a priori, lícitos. Qualquer acolhida da pasteurização do que seja ético ou desejado, sem a observância das peculiaridades econômicas naquele mister, poderá, em verdade, ser a aplicação judicial do paternalismo jurídico.
[1] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, no prelo.
[2] CUEVAS, Guillermo Cabanellas de las et alii. Derecho de la Competencia Desleal. Buenos Aires, Argentina: Heliasta, 2014, p. 50.
[3] DELMANTO, Celso, Crimes de Concorrência Desleal. São Paulo: Bushatsky, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p.13.
[4] No sentido correto de que apenas o dano injusto no contexto competitivo seria suscetível de controle judicial vide MOSCO, Luigi. La Concorrenza Sleale. Napoli: Casa Editrice Jovene, 1956, p. 78.
[5] TJSC, Juizado Especial Cível da Comarca de Tubarão, Juíza Miriam Regina Garcia Cavalcanti, AO5003838-88.2020.8.24.0075, J. 20.08.2020. Tal sentença foi mantida em grau recursal: TJSC, 3ª Turma Recursal, Juiz Alexandre Morais da Rosa, Recurso Cível 5003838-88.2020.8.24.0075, J. 26.10.2021. Uma lástima que caso tão icônico tenha sido, em grau recursal, “fundamentado” per relationem. Se a decisão recursal se mostrou acertada, aos olhos deste autor, o convencimento do Juízo ad quem precisava estar atento ao ditame do artigo 93, IX, da CRFB.
[6] PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 86.
[7] Agradeço ao professor doutor João Victor Rozatti Longhi, magnífico defensor público do estado do Paraná, por me ensinar o conceito.