Newton Silveira
INTRODUÇÃO
O objeto deste estudo é analisar o estágio atual da proteção ao nome comercial (empresarial) no direito interno brasileiro.
Para esse fim, podemos tomar como marco inicial a tese apresentada por João da Gama Cerqueira ao Congresso Jurídico Nacional reunido no Rio de Janeiro em 1943 e aprovada na Comissão de Direito Comercial. Essa tese, com pequenas alterações e acréscimos, resultou no Título VI, Capítulos I e II, do seu Tratado da Propriedade Industrial, Vol. I, Forense, Rio de Janeiro, 1946, pgs. 459 e segs..
Isso porque o texto mencionado faz uma retrospectiva do Direito nacional e estrangeiro anterior de forma bastante completa.
A propósito do tema deste estudo, Gama Cerqueira escreveu:
“No caso do art. 8º, não definindo a Convenção o nome comercial e diversificando o seu conceito de um país para outro, a questão oferece maior dificuldade, importando saber se deve prevalecer a noção de nome comercial vigente no país em que a proteção é reclamada ou a do país em que o direito ao nome foi adquirido. Pela segunda solução manifesta-se Ladas: “A défaut d’une définition et d’une conception internationales du nom commercial, il ne reste qu’un moyen: il faut se rapporter à la loi du pays où la propriété du nom commercial a été acquise. Il s’ensuit que la protection n’est, dans les autres pays contractants, qu’un accessoire de la protéction acquise dans le pays où le droit a pris naissance, en d’autres termes, que l’article 8 assure la validation du nom commercial sur tout le territoire unioniste.”
(Tratado da Propriedade Industrial, Vol. II, Tomo II, 1956, p. 450)
Após a resenha histórica e conclusão pessoal de Gama Cerqueira, a qual será comentada mais adiante, José Carlos Tinoco Soares, ainda durante o seu doutoramento na USP, publicou o seu “Nome Comercial”, Ed. Atlas, 1968, onde afirmava: “O objetivo desta obra foi preencher uma lacuna existente há duas décadas no direito brasileiro… O novo Código da Propriedade Industrial foi comentado, refutando-se a nova denominação de ‘nome de empresa’ que veio substituir a tradicional e que dá nome a este trabalho.”
Não obstante, afirma o autor à p. 40: “Nome comercial é a empresa, compreendida esta palavra como sendo a pessoa física ou jurídica.”
Também foi o nome comercial objeto da tese de doutorado do autor deste ensaio (Newton Silveira, Licença de Uso de Marca e Outros Sinais Distintivos, Editora Saraiva, 1984, no capítulo “formas de identificação do empresário”, pp. 9 e seguintes). Nem Tinoco Soares, nem Silveira, nos citados trabalhos, se envolveram na discussão da natureza jurídica do nome comercial.
Veio, a seguir, o contributo de Karin Grau-Kuntz, in Do Nome das Pessoas Jurídicas, Malheiros Editores, 1998. No capítulo Do Nome das Pessoas e Do Nome da Empresa, a autora destaca: “Na verdade o termo empresa não diz respeito a algo material, mas sim ao exercício da atividade empresarial (p. 24)… Não se confundindo empresa com empresário, mas sendo aquela exercida por este, sobrepõem-se, apesar de não se confundirem, a proteção de caráter concorrencial referente ao exercício da empresa, com o direito à proteção da identidade do empresário” (p. 25).
Em capítulo publicado nos Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli, Quartier Latin, 2008, (obra coletiva) este autor cuida d’A Propriedade Intelectual no Novo Código Civil Brasileiro, pp. 485 e seguintes, e, a partir da p. 492, d’O Nome Empresarial no Novo Código:
“Asseverou-se, portanto, a existência de duas funções atribuídas ao nome empresarial, quais sejam a de sinal de identidade e a de sinal de trabalho, cuja proteção e exclusividade de uso decorrem da sua natureza de direito da personalidade e de direito da concorrência, respectivamente.
A orientação na resolução de conflitos entre nomes empresariais idênticos ou semelhantes também se dará de acordo com a função a que se referir o embate pois, advindo da função subjetiva, a prevalência do nome anterior se refletirá independentemente da atividade exercida pelo seu titular, de maneira absoluta, como direito da personalidade.
Caso o conflito se estabeleça no âmbito concorrencial, dever-se-á acrescer o princípio da concorrência ao princípio da anterioridade, para que a solução seja dada levando-se em conta a efetiva existência de concorrência e de possibilidade de confusão entre os produtos ou serviços.
A vedação da alienação do nome empresarial, a possibilidade de aplicação dos direitos da personalidade à pessoa jurídica e o direito ao nome, seja pela pessoa física, seja pela pessoa jurídica, remete-nos à conclusão que ao nome empresarial se deverá dispensar tratamento dúplice, em razão da própria duplicidade de funções que exerce pois, não obstante a sua caracterização no artigo 966 do Código Civil de 2002, o legislador pátrio admitiu, expressamente, a existência de duas naturezas do nome empresarial, dentre elas o de direito da personalidade da pessoa jurídica, em sua função subjetiva.”
Ainda, Denis Barbosa no Prefácio dos Estudos e Pareceres de Propriedade Intelectual de Newton Silveira (Ed. Lumen Juris, 2008) observou:
“Cabe agora, advertir o leitor para a diversidade normativa a que tais estudos se referem. Quanto à primeira seção, que cuida de nomes de empresa, tivemos, a partir do segundo Código Civil, uma nova atmosfera jurídica. Alguns dos pareceres, ao citar norma anterior, devem ser apreciados a partir desse pressuposto. Teve esse editor a oportunidade de notar:2
O art. 1.155 do CC/2002 considera “nome empresarial” a firma ou a denominação adotada para o exercício de empresa. Assim, não vincula o nome a uma pessoa, mas a uma atividade. Assim, ao teor desse dispositivo, teria proteção o nome empresarial tanto oficial quanto o de fantasia (na prática americana, o “doing business as…”).
Resolvendo uma lacuna legislativa importante, o dispositivo ainda equipara ao nome empresarial a denominação das sociedades simples, associações e fundações.”
E mais:
“Âmbito territorial da proteção
Pelo art. 1.166 o registro do nome empresarial assegura o seu uso exclusivo nos limites do respectivo Estado, mas tal exclusividade estender-se-á a todo o território nacional, se o nome for registrado na forma da lei especial.
Assim, também pelo novo Código Civil, ainda não há um registro nacional de nomes empresariais ou de nomes de empresas civis, mas apenas a proteção conferida pelo registro estadual (art. 61, §§1º e 2º, Dec. 1.800/96), cabendo, porém, pedido de extensão a outros estados.
Paradoxalmente, há, sob a Convenção de Paris (art. 8º), proteção internacional do nome comercial independentemente de registro, o que leva a que um titular francês possa ter seus direitos reconhecidos no Brasil, sem qualquer requisito, conquanto o empresário carioca para os ter em São Paulo precisa solicitar a extensão dos seus direitos, segundo o procedimento (aliás sem específico amparo legal) instituído pela Portaria DMRC-G DG n. 1/74 (vide Parecer DNRC 315/77-IOB 16/81, p. 208).
Importante notar que o tema do conflito de nomes de empresa e marcas, que continua carecendo de mais precisão em face de seguidas modificações legislativas, tem recebido recentemente um singular tratamento no 2º TRF, cujo exemplo se lê em recente acórdão da 1ª Turma Especializada, de 26 de setembro de 2007:
ADMINISTRATIVO. MARCA E NOME COMERCIAL. COLIDÊNCIA. ARTS. 8º E 9º DA CUP. INTELIGÊNCIA.
Tendo em vista a limitação territorial do registro do nome comercial da empresa, não sendo possível saber-se todos os nomes utilizados no território nacional, e considerando ainda que a Convenção da União de Paris veio a dar tratamento destinado à repressão da concorrência desleal, não podendo ser utilizada, ao revés, para paralisar ou obstaculizar a atividade empresarial, o art. 8º da CUP deve ser entendido como repressivo da concorrência desleal.”
A POSIÇÃO DE GAMA CERQUEIRA
Do texto em comento, foram selecionados os trechos abaixo, para o fim de manter sua pureza:
“182. O conceito do nome comercial, em nosso direito, não se acha ainda perfeitamente fixado, quer na doutrina, quer na legislação.
Como nome comercial entende-se, geralmente, “a denominação sob a qual exerce alguém o gênero de indústria ou de comércio a que se dedica”, segundo o conceito de Ouro Preto. Nesse sentido, “significa o mesmo que nome social, firma ou razão social, razão comercial, ou razão de comércio”. “Entende-se também por nome comercial” – acrescenta o autor – a “qualificação particular, que designa um “estabelecimento industrial ou mercantil”.”
“184. Das noções reunidas nesta rápido apanhado, podemos concluir que a tendência de nossos mais autorizados escritores se manifesta no sentido de restringir o conceito do nome comercial ao nome sob o qual o comerciante ou industrial, pessoa física ou jurídica, exerce o seu comércio ou indústria. Por extensão ou ampliação do conceito, nele podem compreender-se a denominação dos estabelecimentos e o nome dos lugares de produção. Dominam esta concepção: primeiro, o significado restrito da expressão nome, implicando na exclusão dos emblemas que distinguem o estabelecimento; segundo, a idéia de que o nome comercial constitui apenas a exteriorização da pessoa do comerciante ou industrial, sujeito de direitos e termo de obrigações e dívidas passivas. Esta concepção de nossos escritores, admissível no que toca à disciplina particular das firmas comerciais e dos nomes de estabelecimentos no âmbito do direito mercantil, não pode, todavia, ser acolhida na propriedade industrial, onde o nome comercial, como veremos possui sentido diverso e mais amplo.”
“185. Na legislação, o conceito do nome comercial não é claro. Nenhuma lei o define; e as que a ele se referem não guardam a desejável uniformidade. Aliás, já advertia Ouro Preto que “nunca foi previdente a legislação pátria acerca do nome, civil ou comercial, sua propriedade e uso”.
(…)
Entre as nossas leis, merece ser destacado e estudado à parte o Decreto nº 24.507, de 29 de junho de 1934, não só por ser o mais recente e estar em vigor, como por haver regulado, de modo especial, o registro do nome comercial.
(…)
De início, estranha-se a distinção feita entre nome comercial e título de estabelecimento, uma vez que este é uma das espécies daquele gênero. Assim, dizendo-se nome comercial, nessa expressão se compreendem os títulos de estabelecimento.”
“187. Deste estudo parece-nos resultar que, tanto entre nós, como nos principais países estrangeiros, cuja literatura jurídica tem maior influência em nossa doutrina, o conceito do nome comercial mantém-se em limites muito estreitos, sendo esse conceito dominado pelo significado restrito da expressão nome e pela idéia de que o nome comercial nada mais é que a exteriorização da pessoa do comerciante ou industrial, no exercício de suas atividades profissionais, como já tivemos ocasião de acentuar.”
“188. (…)
Dedicando-se a qualquer exploração comercial ou industrial, a pessoa, física ou jurídica, necessita adotar um nome sob o qual passa a exercer suas atividades e a assinar-se nos atos a ela referentes.
(…)
Sob esse aspecto, o nome do comerciante individual, as firmas e as denominações ligam-se estreitamente à pessoa do comerciante, como o nome civil à personalidade de quem o usa. No mundo dos negócios e nas relações com terceiros exercem, precipuamente, a função de designar o sujeito de direito. É a função subjetiva do nome.
Sob outro aspecto, porém, as firmas sociais e as denominações das sociedades anônimas, a firma ou a denominação das sociedades por quotas, como a fima do comerciante singular, exercem função objetiva, que caracteriza, individualiza e distingue a atividade do comerciante ou industrial, pessoa física ou jurídica, no campo da competência comercial. Nessa função, mais importante sob o nosso ponto de vista, as firmas e denominações entram no domínio da propriedade industrial e ficam sujeitas a regime especial e a princípios diversos, gozando, ao mesmo tempo, da extensa proteção das leis e princípios que disciplinam a concorrência comercial. Já aqui a adoção de uma firma ou denominação aparece como um direito e não como uma imposição legal. A firma ou denominação converte-se num bem jurídico de valor patrimonial, cuja defesa também constitui um direito.
Dupla função, portanto, subjetiva e objetiva, exercem as firmas e denominações, como simples designação da pessoa física ou jurídica, como sujeito de direitos e termo de obrigações comerciais, e como projeção da individualidade do comerciante singular ou da universalidade do estabelecimento comercial no campo da concorrência. Em sua função subjetiva, as firmas e as denominações são estranhas à propriedade industrial, fazendo objeto exclusivo do registro de firmas e da disciplina do direito comercial. Só em sua função objetiva as firmas e denominações constituem modalidade do nome comercial e objeto da propriedade industrial. É necessário frisar que não apenas as firmas e denominações desempenham essa função objetiva, o que explica a maior amplitude que possui o conceito de nome comercial na propriedade industrial, onde essa expressão não é tomada no sentido que lhe atribui a generalidade dos escritores, isto é, na de nome sob o qual a pessoa exerce o comércio. Isto porque a mesma função é exercida, igualmente, por outros elementos relacionados com o comerciante ou com o seu estabelecimento. Assim, o pseudônimo adotado pelo comerciante, as próprias alcunhas que ele recebe do público ou da clientela, as corruptelas do nome comercial, desenhos, emblemas, siglas, iniciais e outros elementos pelos quais o público conheça o comerciante ou por meio dos quais o comerciante se faça conhecer, todos esses elementos podem exercer, como dissemos, a mesma função objetiva no campo da concorrência comercial.
(…)
Ainda quando criado pelo público, o nome comercial constitui propriedade e goza da proteção da lei.”
“189. (…) O que a lei visa proteger, portanto, através da proteção do nome comercial, é a própria atividade da empresa, considerada como “o complexo de meios idôneos, materiais e imateriais, pelos quais os comerciante explora determinada espécie de comércio”.
(…)
Não se deve, pois, restringir o conceito do nome comercial e, conseqüentemente, a sua proteção, à firma do comerciante singular ou em nome coletivo e à denominação das sociedades, considerando-o, simplesmente, como o nome sob o qual o comerciante ou industrial, pessoa física ou jurídica, exerce as suas atividades. Hoje em dia, o estabelecimento ou empresa substituiu-se, em importância, à pessoa do comerciante ou industrial e o nome comercial liga-se intimamente ao complexo do negócio comercial, considerado em seu conjunto, como uma universalidade distinta e independente dos vários elementos que o compõem e não, apenas, à pessoa do seu proprietário.”
“190. Não é pacífica a doutrina a respeito da natureza dos direitos relativos à propriedade industrial, como já tivemos ocasião de ver quando tratamos do direito sobre as criações industriais e sobre as marcas de fábrica e de comércio. A mesma divergência de opiniões verifica-se a respeito da natureza do direito sobre o nome comercial, dividindo-se os autores em duas correntes principais: a que considera esse direito como direito pessoal e a que o define como direito de propriedade.
A doutrina do direito pessoal, aplicada ao nome comercial, é substancialmente a mesma que expusemos a respeito das marcas de fábrica (nº 126 supra). Os autores que seguem esta corrente consideram o direito sobre o nome comercial como um direito inerente à pessoa, um direito da personalidade ou sobre a pessoa. Kohler, que desenvolveu de modo mais completo esta teoria, classifica o direito ao nome comercial, à marca e à insígnia entre os direitos individuais (Individualrechte), ao lado dos direitos imateriais, que compreendem as criações artísticas e industriais.
(…)
Por esses motivos e, principalmente, porque consideramos o nome comercial, como objeto da propriedade industrial, exclusivamente em sua função objetiva (nº 188 supra), não podemos acompanhar a doutrina de direito pessoal, que assenta, de modo essencial, na função subjetiva do nome comercial, como simples designação da pessoa do comerciante, sujeito de direitos.”
“193. Em nossa opinião, o direito sobre o nome comercial constitui uma propriedade em tudo idêntica à das marcas de fábrica e de comércio, que se exerce sobre uma coisa incorpórea, imaterial, exterior à pessoa do comerciante ou industrial, e encontra seu fundamento no direito natural do homem aos resultados de seu trabalho. Essa propriedade abrange não só o nome do comerciante singular, como também a firma das sociedades em nome coletivo, as denominações das sociedades anônimas e por quotas, a insígnia dos estabelecimentos e os demais elementos que entram no conceito do nome comercial (nº 189 supra), considerados como objetos autônomos de direito.”
“200. A proteção jurídica do nome comercial, em sua diversas modalidades, não depende de registro ou do cumprimento de qualquer formalidade, segundo princípio universalmente aceito e consagrado tanto em nossas leis e pelos tribunais do país, como na doutrina estrangeira e nas convenções internacionais.”
As marcas não registradas não aspiram a esse status. São tuteladas pelas normas da concorrência, do campo da empresa (como atividade) e não do estabelecimento (como universalidade de bens). O mesmo se diga dos segredos empresariais: não compõem o estabelecimento; são tutelados pelas normas que coíbem a concorrência desleal.
O direito não instituiu as marcas de fato e os segredos ao patamar de bens imateriais objeto de propriedade. Integram o âmbito das normas da concorrência (que regulam a atividade), a par dos direitos de personalidade e dos direitos reais.
Em suma, Gama Cerqueira admite a existência de um nome comercial subjetivo. Esse nome comercial subjetivo se chama hoje NOME EMPRESARIAL e se acha tratado nos arts. 1.155 e seguintes do novo Código Civil. Tem caráter de direito de personalidade (agora aplicável às pessoas jurídicas conforme art. 52). Mas este viés do nome comercial não interessa ao mestre, é matéria de direito comercial e não da propriedade industrial. O que interessa ao autor é o nome comercial objetivo, do campo da concorrência.
E conclui, portanto, que o nome comercial objetivo constitui uma propriedade, em tudo semelhante à das marcas.
CRÍTICA À CONCLUSÃO DE GAMA CERQUEIRA
Se, diferentemente do nome empresarial, o nome comercial objetivo não é direito de personalidade, então é direito de propriedade (isso segundo Gama Cerqueira). Refere-se ao estabelecimento, ou está no estabelecimento.
A bipolaridade sujeito/objeto vem do velho direito comercial. Estamos hoje em pleno direito da empresa, na trilogia empresário/empresa/estabelecimento, ou sujeito/atividade/universalidade de bens.
O estabelecimento empresarial é definido no art. 1.142 do novo Código Civil:
“Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.”
Onde colocar a marca registrada? Evidentemente entre o complexo de bens (materiais e imateriais), ou seja, dentro do estabelecimento (antes, era acessório do estabelecimento, hoje é bem dele integrante).
Mas, pergunta-se: onde colocar a marca de fato, a marca não registrada? Direito de personalidade não é; propriedade também não. O mesmo se diga quanto ao segredo industrial, o qual não acha lugar na bipolaridade.
Para isso é preciso entender que o art. 966 do novo Código Civil não define empresário, mas define empresa. Empresa é atividade econômica organizada de produção e distribuição de bens e serviços para o mercado. Empresário (ou sociedade empresária) é quem exerce a empresa.
Essa noção jurídica de empresa decorre do reconhecimento de que atividade existe para o direito (em nosso direito positivo desde, pelo menos, nossa lei da concorrência de 1962).
A trilogia empresário/empresa/estabelecimento nos remete diretamente aos direitos de personalidade (jus in persona ipsa), aos direitos de crédito (jus in persona aliena) e aos direitos reais (jus in re), mesmo com as vertentes identificadas por Edmond Picard (jus in re imateriali e jus in re universali).
Assim, os direitos sobre as criações intelectuais (técnicas e artísticas) foram logo reconhecidos como direitos sobre bens imateriais.
Mas, para “coisificar” as marcas foi preciso instituir um registro específico, que as retirou do âmbito do direito comercial e as incorporou ao direito industrial (como propriedade industrial, reconhecida na Constituição e na lei ordinária).
Nada indica que o chamado nome comercial objetivo tenha sido “coisificado” pelo Direito.
No sistema vigente, a marca de fato, o título de estabelecimento, a insígnia, as expressões e sinais de propaganda e o nome comercial objetivo são objeto das normas repressoras da concorrência desleal insculpidas no art. 195 da Lei de Propriedade Industrial.
Dessa forma, o âmbito de proteção da marca de fato, bem como do nome comercial dito objetivo, é o âmbito da concorrência, nem o da Comarca, nem da Junta Comercial, nem o da Federação.
Explicando melhor. A relação jurídica civil é patrimonialista – sujeito (cidadão, ou, hoje, não empresário)/patrimônio. A relação jurídica do velho direito comercial (desde o Código Napoleônico até o nosso Código Imperial de 1850) era: comerciante/estabelecimento (com o diferencial da prática de atos de comércio). Após o Codice Civile italiano de 1942 e o nosso de 2002 a relação se tornou: empresário (ou sociedade empresária)/empresa (como atividade)/estabelecimento (conjunto de bens, materiais e imateriais, com valor patrimonial e disponíveis).
Como a atividade logrou encontrar lugar na tríplice relação jurídica? Porque a atividade encontrou lugar no Direito desde, pelo menos, a lei de repressão ao abuso de poder econômico de 1962. Se as normas de concorrência (nelas incluídas as de repressão à concorrência desleal) visualizam e regulam a atividade econômica organizada (não fosse ela um feixe de atos jurídicos negociais) é porque, finalmente, após o Código de 2002, a atividade econômica existe para o Direito, e não só para a Economia.
O lugar das normas concorrenciais está nos direitos de crédito (direito das obrigações). Não entre os direitos de personalidade, e nem entre os direitos reais. Portanto, não podemos alojar direitos que decorrem das normas da concorrência no estabelecimento empresarial.
Nem mesmo o título do estabelecimento pode estar no estabelecimento. Refere-se ao estabelecimento, mas se acha tutelado tão somente pelas normas da concorrência, que regulam a empresa como atividade. Bem assim, a insígnia, os sinais de propaganda, os segredos empresariais, enfim, o tal do nome comercial objetivo.
Se o Estado der patente para um segredo industrial, ele se “coisifica” como objeto de propriedade e vai se alojar no estabelecimento.
A diferença entre os direitos de crédito e os reais é que estes são absolutos (erga omnes – como os de personalidade também) e os de crédito são relativos.
Assim, não é só a alienabilidade que os distingue. É também a relatividade. Para os demais sujeitos de direito, trata-se de “res inter alios acta”.
No nosso direito interno, o direito ao nome empresarial (subjetivo) é absoluto, nos limites estabelecidos pelo novo Código Civil. No direito de propriedade industrial, o direito ao nome comercial (objetivo) é relativo.
2 Uma Introdução à Propriedade Intelectual, Lumen Juris, 2003.