A propósito da imitação servil

A propósito da imitação servil

Newton Silveira

A dicotomia entre os direitos de Propriedade Industrial e os Direitos de Autor, o primeiro tradicionalmente enquadrado como ramo do Direito Comercial, os segundos como disciplina do Direito Civil, traz ao jurista motivo de perplexidade ao se defrontar com certas criações que parecem fugir do rígido enquadramento.

Gozando a obra de arte aplicada da proteção autoral, poderá ela ser industrializada mediante autorização do autor ou cessão de seus direitos patrimoniais, de modo que o industrial atua na qualidade de simples licenciado ou de titular a título derivado dos direitos de autor[1].

Quanto aos modelos e desenhos industriais, cumpre destacar que a primeira lei que regulou sua concessão no Brasil foi o Decreto n. 24.507, de 29 de junho de 1934. Já aquele regulamento, que instituiu entre nós as patentes de desenho e modelo industrial, previa em seu art. 1° que o direito de obter patente competia ao autor de desenho ou modelo, novo e original, para aplicação industrial. O inciso 2° do art. 2° estipulava que não poderiam ser privilegiados “os objetos, modelos ou desenhos de cunho puramente artístico, e que não possam ser considerados como simples acessórios de produtos industriais”. O art. 6° da lei previa a possibilidade de ser a patente expedida em nome de pessoa jurídica, desde que preenchida a condição do art. 11, d, que exigia a apresentação de prova da cessão dos direitos do autor, quando o depositante não fosse o autor ou o modelo ou desenho não houvesse sido executado na sua própria oficina, caso em que pertenciam ao proprietário, na forma do art. 9°. O art.14 obrigava a indicação do numero da patente nos objetos protegidos, estando a patente sujeita à caducidade pela falta de exploração por um ano consecutivo (art. 19, parágrafo único). O art. 21 estipulava multas pela violação de tais patentes. As patentes de desenhos e modelos industriais foram sucessivamente tuteladas pelos códigos de propriedade industrial subsequentes de 1945, 1967, 1969 e 1971.

A Lei de Propriedade Industrial vigente, de 1996, tipifica os crimes contra os desenhos industriais nos arts. 187 e 188. O art. 195, inciso XIII, tipifica o crime de falsa indicação de desenho industrial registrado. A ação penal é a prevista nos arts. 200 e seguintes, estabelecendo o art. 207 que, a par da ação criminal, poderá ser intentada ação para proibir a violação de patente, com cominação de pena pecuniária, a qual poderá ser cumulada com a de perdas e danos.

Além da tutela do direito autoral e da exclusividade conferida pelo registro de desenho industrial, poderá o empresário amparar-se nas normas de repressão à concorrência desleal, quando não possua outro titulo que lhe garanta exclusividade sobre a forma dos produtos de sua indústria. Não só o inciso III do art. 195 define como crime de concorrência desleal o emprego de meio fraudulento, hábil ao desvio da clientela, como o art. 209 enseja indenização por perdas e danos por atos tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios ou criar confusão no mercado. Assim, os chamados atos confusórios encontram reparação no âmbito penal e civil, em decorrência das normas de repressão à concorrência desleal.

Entre os atos confusórios, inclui a doutrina a imitação servil, a qual, por este ângulo, somente incidira sobre a forma externa do produto. Nessa hipótese, mesmo que um desenho tenha sido objeto de registro, cujo prazo de vigência já se tenha encerrado, não será lícita a cópia servil que enseje confusão, visto terem os concorrentes uma obrigação de diferenciação. A fim de evitar confusão, devem os concorrentes, ao fabricar desenho de domínio público, introduzir pequenas modificações, desde que estas não impliquem a diminuição da utilidade do produto.

A utilidade do produto, entretanto, deve ser entendida em sentido amplo, inclusive sob o ângulo estético. É nesse sentido que Casella (“Imitazione servile, confuzione e fundibilità”) se refere à utilidade estética do produto, chegando às seguintes conclusões: a) que a utilidade de uma forma consiste no atendimento não só das exigências técnicas, mas também estéticas; b) que a utilidade que se realiza na forma do produto é livremente desfrutável, sempre que seja impossível variar a forma sem prejuízo de sua utilidade; c) quando a variação, mesmo que parcial, é possível sem prejuízo das qualidades do produto e de sua utilidade (técnica e estética), surge uma obrigação de não imitação, devendo a modificação ir até o ponto que seja suficiente para evitar a possibilidade de confusão.

O fundamento de tal proteção repousa no fato de que não se deve confundir a tutela dos modelos com a tutela contra a concorrência desleal, podendo esta subsistir mesmo na ausência da primeira.

A questão que se coloca, entretanto, é se a imitação servil deva ser reprimida mesmo quando não ocorra a hipótese de confundibilidade. Os autores favoráveis à proibição da imitação servil a fundamentam na tutela do fruto do trabalho do empresário e do aviamento.

Segundo Isay[2], a imitação servil é aquela na qual são copiadas fielmente, na forma e nas dimensões, mesmo aquelas partes da máquina cujas formas e dimensões são indiferentes para o funcionamento técnico da máquina, sendo reproduzidas com exatidão as formas e dimensões da máquina produzida pelo primeiro fabricante mesmo quando poderiam variar largamente. Rotondi concentra a proteção contra a imitação servil no protótipo, do qual deriva a possibilidade de produção massificada, considerando ilegítima sua apropriação, por objetivar resultado do trabalho alheio e implicar “lesão do aviamento objetivo do estabelecimento”.

Rotondi se refere à combinação de elementos variados para a obtenção de formas orgânicas e complexas, fruto de experiências realizadas com fadigas e despesas pelo empresário, dando mais realce ao elemento técnico que à forma externa do produto.      O problema se coloca, portanto, sob o ângulo do parasitismo econômico, da chamada concorrência parasitária, servindo-se do fruto da atividade de pesquisa do empresário, da criatividade do concorrente, de que é um exemplo o aproveitamento do segredo industrial.

A imitação, nessa hipótese, cria um desiquilibro na concorrência, ficando o imitador em posição vantajosa em relação ao imitado, já que o imitador, tirando proveito do investimento em pesquisas do imitado, pode opor a este um produto idêntico de menor custo.

Figuras diversas, portanto, a imitação servil e a forma distintiva, que tem por objeto o interesse do empresário na diferenciação. Esta é a conhecida no direito alemão como Ausstattung, que é definida como toda forma concreta apreensível com os sentidos, que, nos ambientes comerciais diretamente interessados, tenha conseguido o valor de um sinal distintivo de um empresário ou idôneo a identificar um produto. Tem um significado amplo que o da marca, por compreender, inclusive, sinais não registráveis como marca. Seu único requisito é a capacidade distintiva.[3] 

A Ausstattung tutela uma situação de fato, contrapondo-se à marca registrada, que configura uma situação jurídica formal. Os sinais não registrados ou não registráveis protegem-se como Ausstattung, que se inclui no âmbito da disciplina da concorrência desleal. Tem-se, assim, duas situações contrapostas: a proteção que decorre do registro e a que decorre do uso, dependendo esta de um situação concreta de confundibilidade perante o público consumidor.

Costuma-se comparar a posição do titular da forma não registrada a uma situação possessória, decorrendo o direito de uma relação de fato entre o sujeito e o sinal, estando seu âmbito circunscrito ao território em que o sinal é conhecido.

Bonasi-Benucci inclui no rol das formas distintivas não registradas uma série de elementos que vão desde a marca como considerada tradicionalmente, incluindo a cor e a forma do produto, os sons, os slogans, as formas de objetos só indiretamente referidos ao produto ou ao serviço (como as faturas comerciais, as listas de preços, veículos, o aspecto do estabelecimento etc.), desde que concorra o elemento da capacidade distintiva.10 Seu valor não é autônomo e a tutela tem por objeto o interesse do empresário em diferenciar-se.[4]

A Corte d’Apello de Nápoles, em 28 de dezembro de 1965,  considerou existente a concorrência desleal por imitação servil de um brinquedo, no caso cães de matéria plástica (“Pluto” e “Filippo”), pondo em relevo a possibilidade de confusão da clientela formada por crianças e destacando que tal possibilidade de confusão constitui a medida necessária e suficiente para que o ato de imitação servil seja reprimido, desde que a empresa imitadora, utilizando a solução original de um problema técnico que representa o resultado de fatigante e custosa elaboração, praticou atos idôneos para produzir o desvio da clientela.

É conhecida, a respeito de imitação servil, a posição de Rotondi. A imitação servil (Sklavischer Nachbau), em sentido técnico, consiste na reprodução mecânica de produto alheio, independentemente da violação de um direito de patente. Assim, quando o produto está patenteado, sua reprodução constitui ato ilícito de contrafação de patente e não de concorrência desleal. Rotondi considera que devem ser excluídas do conceito de imitação servil não só a contrafação de patentes, mas também a imitação de características externas do produto, que constitui também ato de concorrência desleal, mas no sentido de confusão entre produtos concorrentes.

Diz Rotondi: “Ma il problema del quale intediamo occuparsi qui é quello di vedere se, indipendentemente dalla confusione dei prodotti, l’imitazione vada repressa in se e per se, come forma di sfruttamento del lavoro altrui diretto alia realizzazione di un prodotto anche non coperto da un diritto de privativa”. Encara Rotondi o dispêndio de esforços, capitais, materiais e tempo para se chegar à produção de um protótipo, que pode não ser patenteável. Exemplifica com um novo automóvel que possa não constituir uma invenção patenteável ou ser protegido como um novo modelo. Mesmo o modelo poderia cobrir somente elementos singulares (a carroçaria ou acessórios isolados), “non già tutto l’insieme, che pure ha una inconfondibile e orgânica unità, e rappresenta faticiosa e costosa conquista dell’ingegno e del lavoro”.

Aquele que, sem os custos necessários à obtenção de um protótipo, reproduz aquele feito por um concorrente encontra-se em condições de excepcional vantagem em relação a este. Tal imitação pode ser feita sem causar confusão entre os produtos, “mas nem por isso é menos danosa, porque o consumidor, mediante dois produtos substancialmente idênticos, mesmo que advertido da diversidade de origens, preferirá aquele mais vantajoso”, que será o imitado, não gravado pelas despesas iniciais.

Constesta Rotondi a posição de Piola Caselli, no sentido de que tal conceito de imitação servil criaria novos monopólios, além das patentes, que impediriam o livre progresso da atividade industrial. Considera Rotondi haver, nesse caso, lesão do aviamento por reprodução do resultado do trabalho alheio e aproveitamento das despesas do concorrente. Acrescenta que tal posição não frustra ou limita a possibilidade de livre progresso industrial, “prechè la pedissequa riproduzione dell’opera altrui, senza coscienza e senza intelligenzza, non e mai stata una forma di progresso”. Rotondi inclui tais atos na chamada concorrência parasitária, ou seja, o aproveitamento parasitário do trabalho alheio. [5]

É certo que a profundidade da posição de Rotondi vem sendo adotada pelos Tribunais Brasileiros.

No Brasil, o art. 209 da Lei de Propriedade Industrial de 1996 faz menção a outros atos de concorrência desleal, “tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais ou industriais ou entre os produtos e artigos postos no comércio”. À primeira vista, só se poderia incluir no citado dispositivo a imitação servil quando possibilitasse a confusão entre produtos. No entanto, poderia a imitação servil ser incluída entre os atos tendentes a prejudicar os negócios alheios. É bastante conhecida a posição de Remo Franceschelli, que, repudiando a teoria dos direitos sobre bens imateriais, considera como único fundamento do direito industrial a concorrência. Nesse ponto de vista se justificaria tanto a tutela das patentes quanto da imitação servil.

O que nos parece não ter sido levado na devida conta é que Rotondi se refere sempre ao protótipo e a “tutto l’insieme, che pure ha una inconfondibile e organica unità.” Não se referiu Rotondi a uma abstração, como é invenção, cujos limites tem de ser especificados nos pontos característicos de uma patente e em desenhos esquemáticos. Referiu-se a um protótipo e a um conjunto inconfundível, dotado de unidade orgânica. Vai, de uma para outro, uma distancia tão grande quanto, numa obra de arquitetura, vai do projeto básico para o projeto de detalhamento.

Um é abstrato, o outro correspondente a um verdadeiro protótipo. Diversa deve ser a natureza da proteção. A invenção considerada como abstração, seja de caráter artístico ou técnico, tem a proteção do direito de autor em sentido amplo, seja qual for a forma legislativa adotada. O detalhamento, se bem que não voe às alturas da criação de caráter abstrato, representa muito tempo perdido, às vezes noites de insônia, experiências fraudadas até que se chegue àquela combinação de elementos constitutivos que experimentalmente se demonstrou ser a mais idônea para alcançar os fins a que o produto se destina. Não se justifica seja livremente aproveitada pelo concorrente.

Tal é a necessidade de se encontrar uma proteção para esse “molde” ou “protótipo” que a maioria das legislações dos diversos países protege a gravação de um disco (fonograma) como se fora um direito de autor. Não porque constitua efetivamente uma criação artística, mas porque, ao menos nesse ramo, tornou-se evidente a necessidade de proteger-se o trabalho do empresário contra o indevido aproveitamento por terceiros. Da mesma forma, a lei italiana protege o projeto de engenharia, mesmo que não contenha uma invenção em sentido abstrato.

Assim, também são protegidos os programas de computador (software). Na ausência de uma proteção especifica para o protótipo contra sua reprodução mecânica, mesmo com sério inconveniente de tal proteção não poder ser delimitada no tempo, nada mais justo se socorra o empresário das normas de repressão à concorrência desleal, mesmo que para isso tenha de interpretá-las de forma mais elástica, desde que se leve em conta seu significado mais alto de proteção do aviamento, como ideia organizadora, de caráter criativo, que dá unidade ao estabelecimento. Não se está, dessa maneira, criando uma nova forma de monopólio, já que imitação servil não é considerada em relação ao produto isoladamente, mas em relação a ele como elemento imaterial integrante do estabelecimento.


[1] A respeito dos contratos de desenho industrial, cabe mencionar o Guide to Conditions to Contract for Industrial Design, elaborado pelo ICSID – International Council of Societies of Industrial Design, Paris, 1970. Tratando no item 0.4.5.B dos direitos à integridade da obra, o ICSID recomenda que o contrato preveja cláusula estipulando que a obra do designer não poderá ser modificada, alterada, corrigida ou adaptada sem seu expresso consentimento, não devendo ser permitida a utilização do nome designer pelo fabricante em relação a produtos que tenham sido alterados sem o seu consentimento.

[2]  Cit. ROTONDI, Mario. L’imitazione servile come atto di sleale concorrenza.

[3] “Inaltre parole l’obbligo di evitare la confusione tra merci non é automaticamente escluso per il fatto che il segno usurpato non era resgistrable come marchio” (Bonasi-Benucci, Tutela della forma nel diritto industriale)

[4]  Bonasi-Benucci, Eduardo. Tutela dela forma nel diritto industriale. Milano, 1959 e 1963. P. 84.

[5] ROTONDI, Mario. Diritto industriale. 5ª. ed. Padova 1965. Pp. 498/501.